Ensaios Piá - 2017


O voo livre o Piápuru 





 “Era uma vez... num reino distante, um rei forte e poderoso. Tinha esse rei um arqueiro, que certa vez, montado em seu cavalo mágico, foi ao bosque caçar. Chegando lá deparou-se com uma pena dourada do pássaro de fogo. O arqueiro pegou a pena do pássaro de fogo, levou-a consigo e deu de presente ao rei.

 – Obrigado – disse o rei – Agora que você conseguiu uma pena do pássaro de fogo, traga-me então o pássaro inteiro. Se não o trouxer, daqui minha espada, daí sua cabeça cortada”. (trecho do conto popular russo “O pássaro de fogo e Vassilissa-filha-de-rei” 

Seja o pássaro de fogo na Rússia, o rouxinol do imperador na China, ou até mesmo o conto popular brasileiro João Jiló, onde um menino mata o belíssimo rei dos pássaros simplesmente porque não sabia apreciar a beleza ao seu redor, os contos onde uma ave de rara beleza é presa por alguém de poder, têm representantes no mundo todo.

O símbolo do Piá escolhido durante esse ano é o Piápuru, um passarinho voando livremente, símbolo esse que representa muito bem o programa, constituído de vivências artístico-pedagógicas com crianças e adolescentes em horário extracurricular, ou seja, fora da grade.

Aqui faço uma pausa nessa palavra que merece atenção: Grade. Palavra essa tão utilizada na educação: grade curricular, grade de ensino, grades dos portões que separam a escola da rua, grades nas janelas para manter a segurança, grades cercando a quadra (“– Desce daí Yam!”) Grades na sacada do segundo andar (“– Desce daí Mariana!”), grades de segurança nos corredores dos andares de cima do CEU (“- Desce daí Letícia!”). Grades tão puladas pela comunidade para invadir a piscina do CEU Azul da Cor do Mar. Grades que servem literalmente para prender e não para aprender ou apreender momentos enriquecedores, grades que impedem diálogos, grades que representam o poder de quem manda e o poder do que pode e do que não pode ser feito. Somos cercados de grades.

E aí encontramos um ponto de tensão: O Piápuru não é um passarinho preso na gaiola. Ele voa. Ele não fica sentado na carteira com um caderno de desenho na mão como em muitas aulas de educação artística “na grade”. Ele voa correndo pela sala durante as dinâmicas de grupo. Ele às vezes voa pro parquinho nos dias de sol, porque não quer ficar preso em uma sala sem janelas num dia bonito. Ele voa nas asas de um dragão no teatro de sombras improvisado com um lençol. Ele voa pra terras distantes e conhece monstros e árvores encantadas que saem das histórias da oralidade e dos livros. Ele voa na imaginação, voa brincando com fios, voa com as pétalas do dente-de-leão espalhadas ao vento, que ele acabou de soprar e fazer um desejo. Ele é livre, é um pássaro raro e de grande beleza assim como o pássaro de fogo da Rússia.

E nós, Artistas Educadores, ousamos receber um pouco do pó mágico do piápuru e muitas vezes passá-lo para lubrificar nossas asas enferrujadas pelo tempo e assim sair voando também, tal qual em Peter Pan, nós viramos os meninos que se recusaram a crescer e voamos temporariamente sob o efeito do pó de pirlimpimpim que, no nosso caso, dura de duas a três horas, dependendo da faixa etária dos piápurus que nos encantaram.

No Piá não temos aulas, temos encontros. Encontros esses feitos de partilhas, de trocas, de aprendizados mútuos. Não são aulas verticalizadas onde o conhecimento é passado de cima para baixo, não seguimos a prática pedagógica tradicional onde um professor que (pasmem, ainda acredita-se) sabe mais e passa seu conhecimento para os que sabem menos. No Piá pensamos na expressão artística Da criança, PARA a criança e COM a criança. Somos mediadores de um processo que vai além de nós.

“- No Piá a criança é livre demais!” – Disse a gestora do CEU Azul da Cor do Mar, franzindo a testa e fazendo uma expressão de desaprovação. Pela expressão dela, eu devo entender talvez que liberdade é algo ruim, uma qualidade a não ser conservada. Um direito desnecessário a ser mantido.

Mas temos em nossa memória social diversos momentos da história em que a liberdade foi perdida e sabemos o que isso causou, estudamos na escola sobre os tempos da escravidão, do holocausto, da inquisição, do trabalho forçado a que os imigrantes eram submetidos e sabemos que a perda desse direito é algo terrível. Logo... Como quantificar a liberdade? Qual medida usamos? Copos, xícaras, colheres? O que é considerado pelos nossos reis, imperadores e Joãos Jilós uma liberdade aceitável para que eles não matem nem prendam nosso pássaro encantado?

Tudo que é preso é mais contido, é mais manipulado, é mais fácil de ser conduzido. O gado entra em fila para o abatedouro. Mas, o piápuru não voa em fila, muito menos com meninas para um lado, meninos para o outro... eles voam em bando. E se quiserem ainda podem parar no meio do caminho para observar uma borboleta e quem sabe voarem juntos.

Então como convencer nossos reis, tão acostumados às grades da educação, que esse passarinho deve ficar solto e que adoeceria numa gaiola? Como fazer os reis entenderem que a liberdade é algo importante no fazer artístico? E que a genialidade vem do exercício da criatividade e que a criatividade é apenas uma pena das asas da imaginação? Como dizer para nossos reis que eles devem ao menos tentar não ceder aos caprichos de seu infinito poder de ordenar e fazer com que todos obedeçam seus desmandos e sim se abrirem mais as trocas e diálogos, que esses sim tem grande poder: O poder transformador.

Esse ano, por falta de diálogo e trocas, por desmandos e caprichos, três piápurus tiveram suas asas cortadas, perderam o CEU, foram colocados em gaiolas. Porque sim... os piápurus também trazem seus problemas do ninho, também têm seus problemas de adaptação com o meio e também têm seus problemas de socialização, que deveriam ser compreendidos, mas os reis costumam descartar pássaros mais frágeis e manter apenas os fortes enfeitando seus castelos. Esperamos que esses pássaros, agora, não mais no CEU, no futuro não sejam vistos realmente nas gaiolas do sistema carcerário apenas por terem cantado um pouco desafinado e desagradado ouvidos exigentes num momento de descoberta de seu cantar.

Espero num futuro (talvez utópico) que nossos reis saibam apreciar os presentes de seus arqueiros, presentes de confiança e se contentem com a pena dourada ofertada e não ameacem cortar suas cabeças por isso, muito menos prender o pássaro de fogo. Que num futuro os reis olhem com mais ternura, com mais compreensão, sabendo que os piápurus têm sentimentos, tem história, tem memória e que estão aprendendo a direcionar seu voo ainda. E por fim, que os reis saibam reinar e administrar seus castelos de forma íntegra e humana e não apenas escondendo a sujeira embaixo do tapete e culpabilizando seus arqueiros por penas recebidas.

Adriana Napoli Corso

Artista Educadora do CEU Azul da cor do mar e do CEU Lajeado

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